quinta-feira, 14 de maio de 2015

Rejeitada denúncia de tentativa de furto de um pedaço de carne avaliado em R$22,30, em Blumenau


Rejeitada denúncia de tentativa de furto de um pedaço de carne avaliado em R$22,30, em Blumenau







O Juiz de Direito Juliano Rafael Bogo, da comarca de Blumenau, Santa Catarina, rejeitou a denúncia ofertada pelo Ministério Público de Santa Catarina que buscava responsabilizar criminalmente o sujeito que tentou furtar um pedaço de carne, tipo alcatra, avaliado em R$ 22,30. O magistrado reconheceu a irrelevância penal da imputação, sublinhando os custos da persecução de fatos insignificantes do ponto de vista penal. O Empório do Direito recomenda a leitura da decisão, transcrita abaixo.

Autos nº 0020617-31.2011.8.24.0008

Ação: Ação Penal – Procedimento Ordinário/PROC

Autor: Ministério Público do Estado de Santa Catarina

Acusado: M. De A.

Vistos etc.

I – Relatório:

Ministério Público do Estado de Santa Catarina denunciou M. De A., acusando-o de ter praticado o crime previsto no art. 155, § 2º, c/c art. 14, inciso II, do CP, por ter subtraído para si, no dia 25 de agosto de 2011, uma peça de carne tipo alcatra, avaliada em R$22,30 (vinte e dois reais e trinta centavos), do Supermercado Bistek, não conseguindo consumar a infração por circunstâncias alheias a sua vontade, conforme fatos e circunstâncias narrados na denúncia de fl. II.

Inicialmente, o réu aceitou a suspensão condicional do processo.

Após, a benesse foi revogada, retomando-se o andamento da ação penal.

Citado, o réu apresentou resposta escrita, postergando pronunciamento sobre o mérito após a devida instrução do feito.

Em audiência foram produzidas as provas, após o que as partes apresentaram suas alegações finais. O Ministério Público requereu a condenação do réu, nos termos da denúncia. A defesa, por sua vez, sustentou que deve ser aplicado ao caso o princípio da insignificância; que não há provas suficientes para condenação e, subsidiariamente, no caso de condenação, seja reconhecida a atenuante de confissão espontânea.

II – Fundamentação:

Aqui se verifica que o Estado, por meio das agências encarregadas da persecução penal, busca apurar os fatos e obter a condenação de uma pessoa por ter tentado subtrair um pedaço de carne (alcatra) de um grande supermercado. O sujeito foi flagrado pelos seguranças do estabelecimento. O produto foi apreendido e, de plano, restituído ao supermercado. Depois, coube ao Estado a tarefa de, sob a justificativa de que o patrimônio é um bem jurídico a ser protegido, por meio do direito penal, instaurar um inquérito e um processo judicial contra o acusado, ainda que se soubesse, de antemão, que o custo de tudo isso seria infinitamente superior ao prejuízo que a vítima possa ter sofrido (se é que prejuízo houve).

Lamentavelmente, muitos operadores jurídicos vivem na ilusão de que o Poder Judiciário possui capacidade de absorver e dar uma resposta a todo e qualquer conflito surgido na sociedade.

Isto é, numa atividade nitidamente mecânica, sem a necessária visão crítica, esquece-se que enquanto o Poder Judiciário é chamado a tratar de pequenos delitos, que nenhuma relevância possuem, como um furto de uma porção de alcatra, outras inúmeras ações penais versando sobre crimes de média e alta gravidade ficam para trás, sem a resposta penal tempestiva e adequada, ou são levadas ao insucesso pela superveniência da prescrição.

Alexandre Morais da Rosa abordou o tema em artigo publicado no Conjur (aqui):

“A Tragédia dos Comuns é um tipo de armadilha social de fundo econômico que envolve o paradoxo entre os interesses individuais ilimitados e o uso de recursos finitos. Por ela, se declara que o livre acesso e a demanda irrestrita de um recurso finito (Jurisdição) terminam por condenar estruturalmente o recurso por conta de sua superexploração. Em face dos limitados recursos do Poder Judiciário e de sua capacidade de assimilação, a propositura de ações abusivas, frívolas ou de cunho meramente patrimonial (bagatela, insignificantes), sem custo, pode gerar o excesso de litigância (abusivo ou frívolo). O custo de um processo é assimilado pela coletividade e pelos demais usuários na forma de uma externalidade negativa, ou seja, os processos que deveriam ser julgados não podem, pela acumulação de ações inautênticas[3]. Por isso, Júlio Marcellino Jr[4] aponta:

“O modelo tradicional de acesso à Justiça, seja em sua versão clássica ainda defendida por muitos, seja em sua versão atual baseada no modelo gerencial e de eficiência, ainda se mostra precária e insuficiente para dar conta de toda a demanda de ações judiciais. Em outras palavras, entende-se que tal modelo ainda não alcançou, apesar dos significativos avanços, efetividade em nível razoável. Isto porque há uma evidente saturação da capacidade de resposta do Judiciário. Há uma parcela da demanda judicial, e que representa muito em termos de volume, de ações propostas em caso de litigância frívola, ações repetitivas, e litigantes habituais. Entende-se, e defende-se como questão central a partir deste estudo, que nesses casos, de baixa probabilidade de êxito em demandas ou na hipótese de demandas repetitivas, há um flagrante abuso de direito de ação.”

É claro que os viciados em punição e que apostam suas fichas no Direito Penal, num país com a terceira posição no ranking mundial de segregados, pensam que se prende pouco. Esses deveriam entender que o Direito Penal não pode dar mais do que se pede a ele, ou seja, o Direito Penal sempre chega atrasado e não possui os efeitos que promete.“

Adotando-se uma visão minimalista do direito penal (necessária num Estado Democrático de Direito), e considerando a incapacidade do Poder Judiciário de dar resposta a todo e qualquer conflito surgido no meio social, é inarredável que se faça uma filtragem nas ações penais, para que questões singelas e sem importância não obstem o trato de casos efetivamente relevantes.

Ou seja, não se pode admitir a instauração de um processo penal para tratar de fato irrelevante para a sociedade, em comparação com inúmeros crimes de média e alta gravidade pendentes de apuração e julgamento, sob pena de restar inviabilizada a resposta estatal para esses delitos que efetivamente afligem o meio social.

Por outro lado, não se pode perder de vista que a criminalização primária (legislador) e secundária (instâncias encarregadas da persecução penal) está sujeita a limites estabelecidos pelos princípios da intervenção mínima e da lesividade, bem como pelos direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição.

Não se pode criminalizar toda e qualquer conduta reprovável do ponto de vista moral, sem que haja relevante ofensa a um bem jurídico. Igualmente, não se pode impor uma sanção penal sem que a conduta do réu tenha causado significativa lesão a um bem jurídico protegido. Ou seja, o Direito Penal opera de forma fragmentária, tendo sempre como referência o princípio da lesividade (cf. LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 380).

Juarez Cirino dos Santos ensina:

“O princípio da lesividade proíbe a cominação, a aplicação e a execução de penas e de medidas de segurança em casos de lesões irrelevantes contra bens jurídicos protegidos na lei penal, porque considera o bem jurídico do ponto de vista qualitativa (natureza do bem jurídico) e do ponto de vista quantitativo (extensão da lesão do bem jurídico). 1. Do ponto de vista qualitativo (natureza do bem jurídico), o princípio da lesividade impede a criminalização primária e secundária excludente ou redutora das liberdades constitucionais de pensamento, de consciência e de crença, de convicções filosóficas e políticas ou de expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação, garantidas pela Constituição acima de qualquer restrição da legislação penal. 2. Do ponto de vista quantitativo (extensão da lesão do bem jurídico), o princípio da lesividade exclui a criminalização primária ou secundária de lesões irrelevantes a bens jurídicos. Nessa medida, o princípio da lesividade é a dimensão positiva do princípio da insignificância em Direito Penal: lesões insignificantes de bens jurídicos protegidos, como a integridade ou saúde corporal, a honra, a liberdade, a propriedade, a sexualidade etc, não constituem crime” (SANTOS, Juarez Cirino dos. Manual de direito penal. 2 ed. Florianópolis: Conceito, 2012. P. 14-15).

Sobre a tipicidade, leciona Rogério Greco:

[…] tipicidade significa “a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador […]. A adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal (tipo) faz surgir a tipicidade formal ou legal. Essa adequação deve ser perfeita, pois, caso contrário, o fato será considerado formalmente atípico. […] Entretanto, esse conceito de simples acomodação do comportamento do agente ao tipo não é suficiente para que possamos concluir pela tipicidade penal, uma vez que esta é formada pela conjugação da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante. […] A tipicidade conglobante surge quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente é considerada antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou fomentada por esta, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material). […] Sabemos que a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolha dos bens a serem protegidos pelo Direito Penal, assevera que nem todo e qualquer bem é passível de ser por ele protegido, mas somente aqueles que gozem de certa importância. Nessa seleção de bens, o legislador abrigou, a fim de serem tutelados pelo Direito Penal, a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra, a liberdade sexual etc. Embora tenha feito a seleção dos bens que, por meio de um critério político, reputou como os de maior importância, não podia o legislador, quando da elaboração dos tipos penais incriminadores, descer a detalhes, cabendo ao intérprete delimitar o âmbito de sua abrangência. […] Assim, pelo critério da tipicidade material é que se afere a improtância so bem no caso concreto, a fim de que possamos concluir se aquele bem específico merece ou não ser protegido pelo Direito Penal” (Curso de Direito penal: parte geral. 16. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. P. 164-168).

Na espécie, trata-se de uma tentativa de furto de um pedaço de carne, do tipo alcatra, avaliado em R$ 22,30, o que representa menos de 30% de um salário mínimo, valor tido por irrisório (toma-se por referência decisão do STJ noAgRg no REsp 1376290/RJ, Rel. Ministra Regina Helena Costa, 5ª Turma, julgado em 10/06/2014, DJe 18/06/2014). Ademais, o bem foi imediatamente recuperado pela vítima, a qual, portanto, não sofreu prejuízo financeiro. Destarte, mostra-se claramente irrelevante a lesão ao bem jurídico tutelado, inexistindo tipicidade material. Portanto, não há crime.

III – Dispositivo:

Ante o exposto, julga-se improcedente a denúncia, para absolver M. De A., nos termos do art. 386, III, do CPP.

Sem custas.

P. R. I.

Após o trânsito em julgado, arquive-se o processo.

Blumenau (SC), 13 de maio de 2015.

Juliano Rafael Bogo


Juiz de Direito

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